O CORAÇÃO DA LOUCURA (2016)


Filme de Roberto Berliner protagonizado por Glória Pires permanece em cartaz nas capitais e principais cidades de todo o país. Leia a crítica de cinema:

Em “Nise – O coração da loucura”, filme de Roberto Berliner, baseado em fatos reais, mostra a história da médica psiquiatra alagoana Nise da Silveira (1905-1999), que na década de 1940 revoluciona o tratamento de doentes mentais no Brasil, através de um método baseado no afeto e na utilização da arte como terapia.

O longa não é uma cinebiografia, mas uma ficção quase documental com um recorte temporal, a partir do ano de 1944, quando Nise (Glória Pires) volta a trabalhar no antigo Centro Psiquiátrico Nacional, renomeado Hospital Pedro II (HPII), em Engenho de Dentro, zona norte do Rio de Janeiro. Com uma linguagem linear, o filme mostra a visão da medicina psiquiátrica da época, que utilizava procedimentos violentos como a lobotomia e os choques elétricos, contrapondo com a mudança introduzida por Nise, que adotava um tratamento médico a partir de uma postura mais humanista.

Formada pela Faculdade de Medicina da Bahia, a Dra. Nise da Silveira, que estava afastada após ter sido encarcerada no Presídio Frei Caneca (1934-1936) sob acusação de envolvimento com o comunismo por uma enfermeira, finalmente era reintegrada ao serviço público após anos na semiclandestinidade. Seu posicionamento contra tratamentos desumanos aos doentes mentais, que mais lhe lembravam as sessões de tortura aos dissidentes do Estado Novo de Vargas, fez com que ela fosse praticamente impedida de clinicar. Deste modo, foi designada para trabalhar na implantação do Setor de Terapia Ocupacional e Reabilitação (STOR) do hospital, num local quase abandonado, em que os pacientes eram incentivados a realizar pequenos trabalhos manuais.

Entretanto, foi neste setor que Nise encontrou o espaço que precisava para revolucionar no tratamento da esquizofrenia, através do afeto e da utilização da arte, principamente a pintura e a escultura, como forma de expressão de psicóticos com o mundo exterior. Com a ajuda de um funcionário do hospital, Almir Mavignier (Felipe Rocha), criou o ateliê de pintura do HPII. A médica também incentivava a afetividade de seus pacientes ou “clientes”, como ela os chamava, por meio do convívio com animais domésticos, como cães e gatos.

De acordo com o diretor Roberto Berliner, o desejo de filmar “Nise” era um projeto antigo. O processo de pesquisa até o desenvolvimento do roteiro levou alguns anos. O filme foi rodado numa ala do antigo Hospital Pedro II, atual Hospital Psiquiátrico Nise da Silveira, durante quatro meses, em que a equipe de produção e o elenco puderam conviver com médicos, enfermeiros e pacientes. Esse reconhecimento da realidade e do cotidiano de um hospital psiquiátrico, com toda a carga emocional proporcionada pelo ambiente, ajudou os atores como “laboratório” na composição de seus personagens. O resultado deste trabalho pode ser conferido na telona.

Os atores primam pela sensibilidade, pelo respeito e pela verdade em suas interpretações de pacientes reais: Adelina (Simone Mazzer), Carlos (Júlio Adrião), Emygdio (Claudio Jaborandy), Fernando (Fabrício Boliveira), Lúcio (Roney Villela), Octávio (Flávio Bauraqui) e Raphael (Bernardo Marinho). Não há que se falar em caricaturas, mas em poesia. A utilização constante da câmera na mão, passeando pelos corredores e pela área em que ficam os “clientes” da Dra. Nise reproduzem o olhar do observador que busca captar os sinais do inconsciente através do comportamento. O silêncio, o isolamento, a solidão e a observação dos pequenos gestos. A transformação dos pacientes é gradual, assim como os enfermeiros que trabalham com a Dra. Nise, com destaque para o personagem Lima (Augusto Madeira), que após a interferência da médica psiquiatra passa a ter uma postura mais humanizada perante os doentes mentais.

O filme prima por mostrar a integridade de caráter e a persistência da Dra. Nise (Glória Pires) frente as dificuldades enfrentadas em sua vida profissional. Única médica psiquiatra do hospital, ela teve que enfrentar o preconceito dos colegas de profissão, que desacreditavam de seus métodos de trabalho, e até uma certa misoginia por parte de alguns médicos, como no caso do Dr. César (Michel Bercovitch), que tentava desqualificar suas capacidades como profissional da medicina.

A interpretação de Glória Pires faz jus ao personagem título. Não é à toa que a atriz ganhou o prêmio de melhor atriz pelo júri oficial do Festival de Tóquio em 2015. A sua composição da Dra. Nise da Silveira é magistral, com a sensibilidade e a seriedade exigidas pela personagem. A atriz consegue transpassar para a película a personalidade, a inteligência e a energia de uma médica que lutou pela humanização do tratamento de psicóticos. O longa também mostra  a aproximação da Dra. Nise com a psicologia analítica de Carl G. Jung, com quem trocou correspondência por vários anos, no processo de estudo da produção artística dos doentes mentais, exposta no Museu de Imagens do Inconsciente, criado em 1952.

A produção do ateliê do STOR foi objeto de duas exposições internacionais e, atualmente, conta com mais de 360 mil obras, sendo a maior coleção desse tipo de arte no mundo. Suas principais coleções foram tombadas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O acervo pessoal da Dra. Nise foi ainda tombado como Memória do Mundo pela Unesco.

O trabalho desenvolvido pela Dra. Nise da Silveira ultrapassou as fronteiras nacionais e foi reconhecido internacionalmente, não devendo ser esquecido. O movimento antimanicomial no Brasil já é uma realidade e precisa ter continuidade. Não é mais possível aceitar os métodos tradicionais de tratamento.  A reforma psiquiátrica, com o trabalho de reabilitação psicossocial do paciente para reinseri-lo na sociedade, é urgente em nosso país.

O filme de Roberto Berliner nos faz lembrar que a violação dos direitos humanos nos manicômios precisa ser extirpada de nossa sociedade. É um alerta de que a luta e o trabalho da Dra. Nise da Silveira, de humanização no tratamento de psicóticos, deve continuar. Uma das últimas entrevistas concedidas pela psiquiatra pode ser conferida ao final do filme, assim como as imagens reais dos artistas do “Museu das Imagens do Inconsciente”.


Numa sociedade que prega a violência e a desvalorização da vida humana diante do capital, a médica psiquiatra decidiu pela recuperação de homens rejeitados pela sociedade. Em uma das sua últimas aparições, a imagem frágil da Dra. Nise contrasta com sua grandeza de espírito e de amor ao próximo. Segundo Nise: “Nós estamos pretendendo a recuperação de homens considerados farrapos para uma vida socialmente útil e talvez mais rica que a vida anterior que eles levavam.”

A Médica cita ainda uma frase de Antonin Artaud (1895-1948), poeta, teatrólogo e dramaturgo francês de inspirações anarquistas, considerado um louco visionário do teatro surrealista, desenvolvedor da teoria do teatro da crueldade, inspirado no teatro oriental.  O poeta, que defendia a reprodução nos palcos dos sonhos e dos mistérios da alma humana, foi internado várias vezes, sendo submetido a eletrochoques e outros tratamentos violentos, morrendo aos 51 anos, num quarto de manicômio. Segundo Nise: “Penso como Antonin Artaud: ‘Há dez mil modos de ocupar-se da vida e de pertencer a sua época’.” Uma mulher à frente de seu tempo, a Dra. Nise da Silveira soube como ninguém deixar sua marca na história, em defesa da valorização da vida humana.

Elisabete Estumano Freire (26/04/2016)

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    • NISE - O CORAÇÃO DA LOUCURA (2016)
    • DURAÇÃO: 1H46MIN (BIOGRAFIA, DRAMA, HISTÓRIA)
    • DIREÇÃO: ROBERTO BERLINER
    • ROTEIRO: FLÁVIA CASTRO, MAURICIO LISSOVSKI
    • ESTRELANDO: GLORIA PIRES, FLAVIO BAURAQUI, FABRICIO BOLIVEIRA, JULIO ADRIÃO

    • MAIS INFORMAÇÕES: IMDB: NISE - O CORAÇÃO DA LOUCURA (2016)
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