O PROCESSO (1962)

O filme “O Processo”, dirigido por Welles e baseado na obra homônima de Franz Kafka, faz uma crítica ao atual Estado de Direito, ao sistema jurídico e a representação da Justiça. Assim como no romance, o filme apresenta os conflitos existenciais do homem numa sociedade corrompida, da burocracia excessiva, e da desilusão de justiça perante um sistema jurídico dogmático e eivado de vícios, em que o acesso à justiça efetiva por todos é um sonho cada vez mais distante.
O filme, lançado no início da década de 60, e que atende as características do gênero noir, é contemporâneo das discussões sobre o acesso efetivo à justiça. O tema, que se tornou o topo da agenda das reformas judiciárias nos países ocidentais, surge a partir de um ideal de assistência judiciária extensiva a todos que a pleiteassem, deixando para trás a visão individualista dos direitos, típicas dos séculos XVIII e XIX. Tais movimentos de reforma, denominados pelo jurista Mauro Capelletti como “ondas”, tinham por objetivo proporcionar a assistência judiciária aos pobres, sendo que a primeira onda era focada numa assistência individualizada, enquanto a segunda onda, mais voltada para representar os interesses difusos, coletivos.
O filme de Welles não somente dá vida aos personagens kafkanianos, construindo uma atmosfera soturna, com elementos expressionistas, como também nos permite vislumbrar sua visão pessimista do uso político e ideológico dos aparelhos do Estado em prol de uma elite que oprime e corrompe os indivíduos. É importante frisar que hollywood ainda não tinha se recuperado do terror da caça às bruxas realizado pelo senador americano Joseph Macarthy, em que artistas e milhares de pessoas foram acusadas de comunistas e traidores pelo governo, com flagrante violação dos direitos humanos. As suspeitas eram dadas como certas, com acusações infundadas e investigações tendenciosas e parciais. Assim como no romance de Kafka, no período macarthista, muitos atores, diretores e roteiristas tiveram suas carreiras destruídas, muitos foram presos e outros levados ao suicídio.

Joseph K. (Anthony Perkins) vive este pesadelo. Assim como o homem do interior, o personagem, um jovem burocrata em ascensão profissional, é réu em um processo sem acusação formal, baseado numa abstração. Vigiado pelo inspetor e pelos policiais, seus direitos civis são negados, sua privacidade é invadida. O personagem busca descobrir qual a acusação e quem o acusa. Sofre tentativa de extorsão e reage. Percebe que é mais uma vítima do sistema, como vários outros acusados, identificados por números de processo, como nos campos de concentração de Aushwitz. Desenganados, esquecidos pela justiça e pela morosidade do sistema processual, que rodam os pátios dos tribunais.  Homens e mulheres sem voz, mudos, intimidados pela lei e por seus operadores. A justiça, ideal utópico, é apenas uma imagem, uma pintura, sendo inalcançável. No mundo das sociedades contemporâneas, em que a tecnologia é vista como a solução de tudo, o sistema jurídico é ineficiente, eivado de vícios, sendo utilizado como ferramenta de opressão e controle dos cidadãos. Não era preocupação do Estado o fato de que muitas pessoas – principalmente as mais pobres – eram incapazes de utilizar plenamente a justiça e suas instituições. A igualdade era apenas formal, não material.

Os personagens de um modo geral são promíscuos, insaciáveis, erotizados ao extremo, corruptos, denunciando metaforicamente a promiscuidade e a aberração do que se tornou o sistema judicial, apresentando as mazelas de uma sociedade enferma.
O Sr. K desafia o sistema. Denunciando ser vítima de uma verdadeira conspiração, ele questiona a sociedade, o sistema processual, as leis, seus atores – ou seja, os operadores do direito. Preso no labirinto judicial, nos corredores do processo, ele se debate contra tudo e chega à quase insanidade. Precisa de ar, de liberdade, de quebrar as amarras da burocracia e do sistema judicial, das arbitrariedades. Reclama sobre a morosidade do advogado e exige dinamismo para resolver seu caso. Não aceita se submeter aos abusos de seu representante legal e o destitui. Nega-se a situações de humilhações que o advogado Hastler submete o cliente Bloch. Joseph luta sozinho para derrubar as barreiras que a sociedade e que as instituições o submetem e tenta entender, em vão, a lógica do processo ao qual está subordinado, na esperança de ter seus direitos garantidos.

Kafka, através de seus personagens ficcionais, censura veementemente o sistema processual penal do início do século XX - que continua sendo a base do sistema inquisitivo no conjunto processual penal contemporâneo.  O filme de Orson Welles resume a ideia central do livro, que discute a ordem jurídica, o sistema processual e o domínio do Estado sobre o indivíduo, numa sociedade corrompida, em que os operadores da lei brincam com os destinos dos cidadãos. Uma justiça apenas no papel, no quadro, na representação de uma sociedade crivada por vícios, pela exacerbação dos egos dos juristas, que manipulam a vida das pessoas, brincam com seus destinos.

Frequentemente, há o uso da câmera em plongèe, retratando o personagem numa posição de oprimido pelo sistema, enquanto seus algozes são filmados em contra-plongèe, num posicionamento de superioridade perante o personagem. O dispositivo narrativo é composto de um prólogo sobre a parábola do homem do interior que tenta passar pela porta da lei. O narrador que conta é o advogado, que esclarece que a lógica dessa história é a lógica do sonho, de um pesadelo. Em primeiro plano vemos a figura do personagem Sr. K dormindo, que acorda ao ver um homem, o inspetor, abrindo a porta do seu quarto e adentrando no espaço. Temos, então uma duplicidade de narrador. Àquele que narra em off e o narrador imagem, que mostra os eventos, a partir do ponto de vista do Sr. K. Diegeticamente, os eventos a seguir seriam apenas um pesadelo do Sr. K ou realmente estariam acontecendo? Seria o narrador imagem o mesmo personagem (em off)  que num segundo momento será revelado na trama como o advogado do Sr. K? Há, pois, uma duplicidade de focalização advinda de um efeito duplo de subjetividade. Uma focalização mental e uma focalização visual.
Apesar de estar sob a égide de um Estado Constitucional, Kafka demonstra que o Sr. K tem progressivamente seus direitos do cidadão violados, mostrando a fragilidade do positivismo. O personagem sofre em decorrência do abuso de autoridade da polícia e do judiciário, em detrimento de seus direitos fundamentais, condenado previamente, privado de seus bens e de sua liberdade, sem direito ao contraditório e a ampla defesa.
O autor e o cineasta nos apresentam um quadro de flagrante arbitrariedade e de deformidade do procedimento investigativo. De tentativa de suborno e de extorsão, de tortura física e psíquica a que submete o acusado, e demais patologias do sistema judicial. Do desequilíbrio de forças entre Estado-Juiz e o cidadão, que não pode defender-se adequadamente. É necessário, pois, o respeito aos princípios e garantias constitucionais. Um sistema jurídico que pretenda garantir os direitos de todos.
As portas da lei que não são abertas pelo sistema e que, no entanto, deveriam dar acesso à justiça são as barreiras que o sistema judicial impôs à sociedade. Metaforicamente, a crítica de Kafka é a da inércia do Estado-Juiz, que ao invés de promover a justiça, está cada vez mais envolto numa burocracia e num aparato estatal gigantesco, que cria barreiras praticamente intransponíveis aos jurisdicionados do acesso à ordem jurídica justa. É necessário, pois, as reformas no sistema judicial, que atendam aos anseios da sociedade, evitando o autoritarismo, o nepotismo, a arbitrariedade e a anarquia, assim como evitar que se torne obsoleta e morosa. Entretanto, há que se ter cuidado de não se ignorar os riscos e limitações de tais reformas.

Vivemos numa sociedade e num Estado de Direito baseado na interdependência dos três poderes, na clássica concepção de Montesquieu: Legislativo, Executivo e Judiciário. Entretanto, há uma crise nas instituições, que no Brasil, atualmente, chegam a ser alarmantes. Num Estado em que a população desacredita cada vez mais em seus representantes, temos um executivo e um legislativo enfraquecidos. O Judiciário, após várias reformas, começa a se fortalecer institucionalmente, principalmente na figura do presidente do STF. Porém, o desequilíbrio na balança entre os três poderes pode levar a sérias consequências para a estabilidade do regime democrático. O filme de Orson Welles e a obra de Franz Kafka nos faz pensar no passado, no presente e no futuro de nossas instituições e do modelo de justiça que todos queremos ter. 

Elisabete Estumano Freire


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O processo (1962)
Título original: The Trial
Duração: 1h59min (drama, mistério, suspense)
Direção: Orson Welles
Roteiro: Pierre Cholot, Franz Kafka (baseado no livro "The Trial")
Estrelando: Anthony Perkins, Arnoldo Foá, Jess Hahn, Jeanne Moreau, Romy Schnneider

Mais informações: IMDB - O PROCESSO (1962)
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