O insulto


"O insulto" é o primeiro filme libanês a concorrer ao Oscar, na categoria melhor filme estrangeiro. Dirigido por Ziad Doueiri, o longa aborda as feridas abertas entre cristãos e muçulmanos, que convivem lado a lado em território libanês.

Ambientado na capital Beirute, o filme narra a história do mecânico Toni  Hanna (Adel Karam), um cristão maronita, que entra em conflito com o mestre de obras Yasser Abdallah Salameh (Kamel El-Basha), um refugiado palestino, por causa de uma calha danificada. O incidente aparentemente banal acaba por se transformar no estopim de uma explosão de ressentimentos. Os personagens, que mal se conhecem, desferem ofensas verbais e físicas. O caso vai parar nos tribunais, ganhando a atenção da imprensa e dividindo a opinião pública em nível nacional. 


O roteiro de Ziad Doueiri, em parceria com Joëlle Touma, foi inspirado numa situação real, vivenciada pelo próprio diretor num desentendimento com um encanador palestino. Ele ofendeu o operário utilizando as mesmas palavras proferidas pelo personagem de Toni. Como resultado da briga, o encanador foi demitido. Ao saber do ocorrido, o cineasta entrou em defesa do palestino e pediu-lhe desculpas. Segundo Doueiri “o incidente pode ter sido trivial, mas o sentimento no subconsciente não. Quando você diz essas palavras, é porque sentimentos e emoções muito pessoais foram impactados.” 


O que aconteceria se nenhum dos dois lados voltasse atrás e se desculpasse do ocorrido? Partindo dessa hipótese, o longa apresenta as possíveis consequências do fato, que se transforma numa disputa judicial. O embate entre esses dois homens, que representam o conflito entre cristãos e muçulmanos, ganha repercussão midiática e abrangência nacional. O caso tem como pano de fundo os antagonismos entre muçulmanos, judeus e cristãos no Oriente Médio. O passado dos personagens, marcado pela violência na Guerra Civil do Líbano (1975-1990), vai sendo revelada a cada momento. Nenhuma das duas partes é totalmente isenta de culpa, mas todos são vítimas da cultura do ódio e da intolerância com o outro. 


A direção de atores enfatiza tanto a fragilidade da situação dos refugiados em país estrangeiro, quanto sua força em defender sua honra e dignidade. Do mesmo modo, apresenta o ponto de vista do cristão maronita, que também se sente injustiçado pelo sistema. Diante de ânimos exaltados por um passado de guerra e sofrimento, o diretor lança um olhar revelador sobre a sociedade libanesa como uma complexa teia de relações sociais sob a constante ameaça de novos conflitos armados. Algo comparado a um barril de pólvora, que pode explodir a qualquer momento, pelo menor dos pretextos. 


A narrativa fílmica é construída no sentido de apresentar o judiciário libanês como um sistema que busca ser justo e imparcial na resolução das questões litigiosas. Um recado, ainda que não oficial, de que o Estado de Direito trabalha para manter a ordem social, tentando evitar a barbárie e o justiçamento. O revanchismo que existe entre as diferentes comunidades étnicas e religiosas que convivem naquele país, ainda que possa ser insuflado pela política e pelo circo midiático, deve ser evitado a todo custo. Cabe ao Estado manter a paz e a segurança nacional. 


Os roteiristas também fazem uma crítica não apenas ao preconceito étnico e religioso, mas também as desigualdades sociais, políticas e ao patriarcado machista na sociedade libanesa. A relação de Toni e Yasser com suas respectivas esposas é reveladora. Rita Hayek interpreta Shirine Hanna, a jovem esposa grávida de Toni, que tenta persuadir o marido a desistir dos tribunais. Já a personagem Manal Salameh (Christine Choueiri) é a companheira resignada do palestino Yasser. Ambas são mulheres fortes que conseguem ter uma visão mais ampla da situação, libertando-se do revanchismo religioso e étnico.


Do mesmo modo, podemos perceber o conflito no relacionamento dos advogados das partes em litígio e nas diferenças de conduta. Ambos são de ascendência judia, de diferentes gerações e possuem visões distintas sobre a problemática da questão palestina. Ciente da situação desvantajosa do refugiado Yasser, a jovem advogada Nadine (Diamand Bou Abbould) assume o caso enfrentando o famoso jurista sionista Wadji Wehbe (Camille Salameh). Os operadores do direito rivalizam entre si não somente o ganho da causa, mas sinalizam uma mudança necessária sobre a visão da sociedade e do Estado com relação a situação dos refugiados palestinos no Líbano.


Presos numa armadilha judicial e midiática, o que poderá libertá-los? O diretor tenta mostrar que cada lado tem a sua verdade. O opressor e o oprimido estão dos dois lados. Além da indicação ao Oscar, o filme recebeu o Audience Award da American Film Institute e conquistou o prêmio de Melhor Ator no Festival de Veneza pela excelente atuação de Kamel El Basha. Sua interpretação do palestino Yasser mostra um homem cauteloso e consciente da sua posição numa sociedade segregacionista, evitando cometer os erros da juventude. Vivendo sob a opressão da condição de refugiado em país estrangeiro, com seus direitos limitados, o personagem irá surpreender o espectador.

longa é uma reflexão do cineasta sobre as consequências da raiva e da intolerância que dividem dois povos que deveriam buscar a paz através do diálogo e do esforço de entendimento mútuo. Muitas vezes as atitudes dizem mais que as palavras. "O insulto" é, antes de mais nada, um filme sobre a natureza humana.

Elisabete Estumano Freire.




A situação dos refugiados palestinos no Líbano

O filme de Ziad Doueiri aponta para a crítica situação dos refugiados palestinos em território libanês. Há várias denúncias de que o governo criou uma espécie de preconceito institucionalizado contra os palestinos. Frequentemente associados à Guerra Civil no Líbano (1975-1990), eles são vistos como uma ameaça à segurança do país, não sendo integrados à sociedade. Outro fator que reforça a discriminação é o sistema confessionalista, adotado pelo Estado, unindo religião e política, rateando o poder político entre os diferentes grupos religiosos e ditando a estrutura social. Apesar de ser um sistema multiconfessional, no Líbano o poder político está nas mãos de uma maioria cristã e pró-Síria.

Segundo o relatório anual da Anistia Internacional de 2015/2016,  os direitos humanos de palestinos no Líbano não são respeitados há décadas. Sujeitos a leis e regras discriminatórias, os refugiados vivem em 12 campos e 42 guetos, com postos de controle da polícia de quem entra e sai. Muitos não conseguem documentação para trabalhar fora das áreas que foram confinados, permanecendo isolados. O relatório ainda denuncia a violação dos direitos da mulher, a impunidade, o excessivo uso da força, a tortura e o tratamento desumano.

O site da Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Oriente Próximo (UNRWA) informa que existem cerca de 450 mil refugiados palestinos no Líbano. Já o site do escritório da Organização Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil afirma que são 28 mil refugiados palestinos vivendo em 12 campos e acampamentos não oficiais no Líbano. De acordo com a Confederação Israelita do Brasil (CONIB), dados apresentados pelo Centro de Desenvolvimento Humano do Líbano (CDHL) mostram que o número real de palestinos no Líbano é de 270 mil. A enorme diferença dos números se dá por razões políticas e de financiamento. As autoridades libanesas não cancelam o registro de refugiados palestinos que deixam o país e a UNRWA tende a inflar os números.

Segundo a OIT-Brasil, os refugiados palestinos que vivem no Líbano enfrentam condições de trabalho abusivas, recebem remuneração 20% inferior ao trabalhador libanês, poucos têm um verdadeiro contrato de trabalho, e quase nenhum é respeitado em seus direitos trabalhistas. Eles não têm acesso à saúde, férias e licenças remuneradas, e poucos têm direito à indenização ao fim do contrato.

De acordo com a Organização Palestina de Direitos Humanos (PHRO) há diferença de tratamento entre os refugiados sírios e palestinos no Líbano. Os palestinos são discriminados desde o início, no controle da fronteira. Refugiados sírios recebem permissão automática para ficar no território libanês, por três meses, sendo enquadrados na lei de imigração como qualquer outro estrangeiro, desde que tenham um documento de permanência legal. Os palestinos não recebem tal permissão, sendo lhes negada a livre circulação pelo país.


Em geral, as empresas libanesas não contratam palestinos, obrigados a trabalhar dentro do campo de refugiados, conforme mostra documentário da Al Jazeera, Life in the shadows: Palestinians in Lebanon. Quando conseguem trabalho de forma ilegal, recebem pagamento por diária, sendo-lhes negados os direitos trabalhistas. Segundo a Confederação Israelita do Brasil (CONIB), o mundo ignora a segregação palestina no Líbano, que restringe-lhes não somente o direito de ir e vir, de liberdade e opinião, mas também de trabalhar, de ter propriedade e ter acesso à saúde e educação. 

Segundo a CONIB, o relatório Stateless Palestinian Refugies in Lebanon (2014), do Serviço de Imigração da Dinamarca apresenta dados sobre o sistema de ensino no Líbano, que é altamente privatizado e elitista, de pouca mobilidade social. De acordo com o relatório, as crianças palestinas que estudam nas escolas da UNRWA não tm nenhuma chance de entrar em universidades libanesas. Além do ensino fraco, os jovens palestinos são desmotivados pela restrição ao acesso do ensino universitário, sendo proibidos de exercer profissões sindicalizadas como direito, medicina, farmácia, odontologia, engenharia e docência. Muitos tentam emigrar ilegalmente para a Europa, EUA, África ou outros países árabes. Outros ingressam em grupos radicais ou se envolvem com drogas. 

Reportagens do The Guardian também denunciam as condições desumanas dos refugiados nos acampamentos de Yarmouk, na Síria, no Líbano e na Jordania, mostrando o descaso da comunidade internacional e o sofrimento imputado aos palestinos pelo mundo árabe. Segundo o jornalista Peter Mackenna, o governo do Líbano institucionalizou o apartheid, segregando os palestinos em guetos, onde não tem acesso à saúde e a educação. Eles são impedidos de exercer pelo menos 25 profissões, não podem comprar imóveis ou circular livremente pelo país.

Elisabete Estumano Freire.

Entenda a história do conflito em
http://www.programacinesom.com/2018/02/filme-o-insulto-aborda-situacao-de.html



Estreia: 8 de Fevereiro
Distribuição: Imovision
Duração: 1h52m
Similar Videos

0 comentários: