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Nada a esconder



Dirigido por Fred Cavayé, o filme "Nada a esconder" (Le Jeu, 2018) é a versão francesa do longa italiano Perfetti sconosciuti (2016), uma comédia dramática de Paolo Genovese.


O filme narra o encontro de amigos que se reúnem para um jantar, durante um eclipse total da lua. No transcorrer da reunião, eles decidem realizar um jogo perigoso: todos deverão ler em voz alta qualquer tipo de mensagem recebida em seus respectivos smartphones e atender em viva voz as chamadas telefônicas. O resultado disso são revelações pessoais que envolvem intrigas, traições e preconceitos.

O longa original fez enorme sucesso e ganhou o David di Donatello, o oscar italiano, e o prêmio da crítica, Nastro D'Argento. Também levou o Globo de Ouro de 2016 na categoria melhor comédia, além de outros prêmios, como o de melhor roteiro no Tribeca Film Festival e no Bari Internacional Film Festival. A história, aparentemente simples, transformou-se num verdadeiro fenômeno mundial. Como a telenovela colombiana "Yo Soy Betty, La fea", o roteiro do italiano Paulo Veronese vem ganhando várias versões pelo mundo afora: espanhola, mexicana, chinesa, coreana, turca...enfim. Em cada remake, os diretores tentam imprimir seu toque pessoal, com ênfase ou não no aspecto fantástico do roteiro.

Na versão francesa, Fred Cavayé fez um excelente trabalho de direção de atores. Há uma ênfase no jogo de olhares e na postura corporal. Desde o começo da trama é possível perceber pequenos detalhes sobre a psicologia dos personagens. Há um cuidado em evidenciar alguns elementos cênicos, muito mais que na versão italiana. O diretor constrói uma narrativa repleta de pistas para os espectadores mais atentos, como uma espécie de indicador dos acontecimentos futuros. 

Destaque também para o trabalho da fotografia, a cargo de Denis Roudon,  e de edição, de Mickael Dumontier, em perfeita sintonia com o jogo cênico. Os enquadramentos e a movimentação de câmera revelam um olhar de observador à espreita, sem perder nenhum evento, sustentando uma atmosfera de mistério. 

No filme de Cavayé, os anfitriões do jantar são Marie (Berénice Bejo) e Vincent (Stephane de Grodt), que divergem quanto à criação de sua filha Margot (Fleur Fitoussi). Eles convidam os casais de amigos: Charlotte (Suzanne Clément) e Marco (Roschdy Zem), que possuem uma relação explosiva; o taxista Thomaz (Vincent Elbaz), recém casado com Léa (Doria Tillier); e o professor de educação física Ben (Grégory Gadebois) e sua misteriosa namorada.

À medida que o jogo vai avançando, os personagens vão revelando seus segredos. O mote do enredo: na era da tecnologia digital e das redes sociais, os celulares não são mais um inocente meio de comunicação, mas se tornaram quase como uma espécie de "caixa preta" das vidas dos indivíduos. São dispositivos eletrônicos que carregam a intimidade de seus proprietários.


A adaptação francesa aposta na sutileza das interpretações, mantendo a essência do original italiano. O aspecto fantástico está presente, mas não é o primordial neste filme. Diferente, por exemplo, da versão espanhola, de Álex de la iglesia, que explora o sobrenatural. O longa de Cavayé também é mais ambíguo e cheio de nuances, distinto da versão mexicana, de Manolo Caro, em que os conflitos são resolvidos de maneira mais seca e direta.   


Em Le Jeu podemos observar uma nítida linha de construção psicológica, em que os personagens estão separados por diferentes pontos de vista, padrões de comportamento e status social. Mais que um jogo, as situações revelam um humor ácido, mas também o drama pessoal por detrás das aparências. Destaque para as atuações de Berénice Bejo, Suzanne Clément, Stephane de Grodt e Grégory Gadebois.

As versões francesa, espanhola e mexicana podem ser encontradas na Netflix.


Elisabete Estumano Freire.






BACURAU


Bacurau, novo filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é uma alegoria da resistência do povo brasileiro e, principalmente nordestino, contra a opressão, o preconceito e o imperialismo estrangeiro. O longa, ovacionado nos principais festivais internacionais, foi vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Cannes e do prêmio de melhor filme na Mostra CineMasters Competition do 37° Festival de Cinema de Munique (Filmfest München).

A história se passa num futuro distópico, porém não muito distante da realidade brasileira. Bacurau é um vilarejo do sertão nordestino onde falta tudo (remédios, alimentos, água, etc.), só não falta consciência política. Acostumados com a vida sofrida, esquecidos do poder público, os habitantes de Bacurau estão cansados das promessas eleitoreiras e não se deixam mais enganar. Unidos, eles criam uma rede de proteção para sobreviverem contra ataques externos. Entretanto, o vilarejo começa a ser alvo de uma onda de violentos e misteriosos crimes. 

Com um estilo que nos remetem às alegorias cinematográficas de Glauber Rocha, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles também utilizam o recurso da criação de um território imaginário como metáfora do Brasil. Em Terra em Transe (1967), o cenário é a província de Alecrim, capital de "Eldorado", fictício país atlântico, palco de um golpe de estado; em Bacurau (2019), na fictícia cidade do sertão nordestino, há uma tentativa feroz de aniquilamento de seu povo.

A narrativa é construída numa atmosfera fantástica, explorando o imaginário místico e sobrenatural do interior do país. O filme evidencia o uso das tecnologias de comunicação, o terrorismo e a desumanização das relações de poder. Coloca em pauta questões como dominação cultural e econômica, políticas imperialistas e ideologias racistas, mostrando um país dividido pela intolerância e preconceito regional. O roteiro enfatiza a resistência do povo que, mesmo oprimido, ainda encontra forças para lutar por sua dignidade e liberdade.

O longa possui uma tessitura singular, reunindo num mesmo projeto convenções de diferentes gêneros cinematográficos: da ficção científica ao drama rural, passando pelo suspense, filmes de cangaço e serial killer. A opção, na montagem, de fazer referências a obras icônicas da cinematografia é uma surpresa à parte. Por outro lado,  a trilha musical mistura diferentes ritmos e sons, trazendo a musicalidade do nordeste, além de incorporar o eletrônico e o pop internacional. 

O filme é uma coprodução Brasil-França (CinemaScopio do Recife; SBS de Paris), que reuniu um elenco internacional. Destaque para a atriz Sonia Braga, no papel da Dra. Domingas; Karine Teles como a forasteira; e o ator alemão Udo Kier (SuspiriaGarotos de ProgramaBerlin Alexanderplatzque interpreta o misterioso Michael. No elenco, temos ainda as presenças de Barbara Colen (Aquarius), Silvero Pereira, Thomas Aquino, Antonio Saboia, Rubens Santos e Lia de Itamaracá.

Bacurau abriu o Festival de Cinema de Gramado de 2019 e recebeu convites para ser exibido em mais de 100 festivais e mostras. Aclamado internacionalmente, teve os direitos de distribuição vendidos para 30 países, incluíndo salas de cinema, home vídeo e streaming para os EUA, Canadá, Reino Unido, França, Japão, Bélgica, Luxemburgo, Holanda, República Tcheca, Taiwan, em países da América Latina e Escandinávia. 

Elisabete Estumano Freire.

Todos já sabem



Escrito e dirigido por Asghar Farhadi, o filme "Todos já sabem" (Todos lo saben) marca a estreia do aclamado cineasta iraniano à frente de uma produção de língua espanhola. Estrelado por Javier Bardem, Penélope Cruz e Ricardo Darín, o longa narra a história de segredos revelados, tendo como estopim uma tragédia familiar: o sequestro de uma jovem.


Escolhido para a abertura oficial do Festival de Cannes 2018, o filme foi bastante criticado pela imprensa especializada. O motivo alegado: as situações do roteiro pareciam óbvias demais e as atuações resultaram um tanto caricatas. Tudo muito decepcionante tendo em vista o talento inegável do elenco espanhol e do próprio cineasta. É bom lembrar que Asghar, responsável por obras primas do cinema iraniano como "Procurando Elly" (2009) e "O passado" (2014), foi vencedor de dois Oscars de melhor filme estrangeiro por "O apartamento" (2017) e "A separação" (2012), este último também sendo indicado ao Oscar de melhor roteiro original. 


Ainda que "Todos já sabem" não tenha a mesma força das demais obras do cineasta iraniano, continua sendo um bom filme. Narra a história de Laura (Penélope Cruz), que chega de Buenos Aires, com os filhos, a um vilarejo às proximidades de Madrid para prestigiar a cerimônia de casamento de sua irmã Ana (Inma Cuesta). Lá ela reencontra parentes e um antigo amor, Paco (Javier Bardem), que se tornou um próspero produtor de vinho e casou-se com Bea (Bárbara Lennie).

Durante a festa de casamento ocorre o sequestro de Irene (Carla Campra). O fato perturba toda a família obrigando Alejandro (Ricardo Darín), atual esposo de Laura, a viajar para a Espanha. Começa então uma corrida contra o tempo para conseguir o dinheiro do resgate, ao mesmo tempo que aumentam os conflitos familiares, revelando desconfianças, mágoas e segredos. Entretanto, como o próprio título do filme sugere, nem tudo é tão oculto como se poderia imaginar.


Realmente, alguns diálogos entre os personagens centrais chegam a nos lembrar de dramalhões de novelas mexicanas. Penélope Cruz não parece estar muito à vontade no papel, assim como  Darín cujo personagem é quase irreal. Mesmo assim, o ator realiza um bom trabalho, apesar de Bardem dominar toda a trama. 

O final não chega a ser surpreendente e é revelado muito cedo, causando certa frustração para os fãs da cinematografia de Asghar. Entretanto, podemos perceber o toque do cineasta iraniano, principalmente nas cenas finais, no jogo de olhares e no suspense sobre o futuro dos personagens. Com uma bela fotografia de José Luis Alcaine, parceiro de Almodovar em "A Pele em que habito", o filme continua sendo uma boa opção de entretenimento. Vale a pena conferir.

 Elisabete Estumano Freire






Todos já sabem (Todos lo Saben)

Ficha técnica
Diretor: Asghar Farhadi
Roteirista: Asghar Farhadi
Elenco: Penélope Cruz, Javier Bardem, Ricardo Darín, Eduard Fernández, Bárbara Lennie, Inma Cuesta, Elvira Mínguez, Sara Sálamo, Roger Casamajor, José Ángel Egido
Duração: 132 minutos
Classificação indicativa: a definir
Gênero: Drama




Bodas de Papel



O curta-metragem ficcional Bodas de Papel , com roteiro e direção de Keyci Martins e Breno Nina, selecionado na Mostra Competitiva do Festival de Cinema de Brasília (2016), é uma alusão à realização dos desejos e fantasias de um casal, que comemora seu primeiro ano juntos.

Estrelado por Áurea Maranhão e Breno Nina, o curta metragem é inspirado num fragmento do “Livro do Desassossego”, de Bernardo Soares, um dos heterônimos de Fernando Pessoa: “A decadência é a perda total da inconsciência; porque a inconsciência é o fundamento da vida. O coração, se pudesse pensar, pararia.” A obra literária é considerada a mais próxima do ortônimo do escritor português, quase como um auto-retrato, sendo Bernardo Soares um semi-heterônimo, uma máscara ou mutilação da personalidade de Pessoa. Em forma de diário, o livro traz confissões pessoais e reflexões sobre a vida, fé, razão e os sentimentos humanos como o tédio, a angústia e o desejo.

De conteúdo adulto, o filme expõe o prazer e a dor, misturando fetichismo e erotismo. Com cenas fortes, mostra um relacionamento pautado por fantasias violentas. A encenação das situações contém a revelação de uma sexualidade reprimida, do desejo de submissão e de dominação, numa relação de poder marcada pela transgressão e alguns momentos de ternura e fragilidade.

O curta-metragem é uma produção da Escola de Cinema do Maranhão em coprodução com a Guesa Filmes.

Elisabete Estumano Freire


* Texto publicado no Festival de Cinema Feminino de Chapada dos Guimarães


Acrimônia


Escrito e dirigido por Tyler Perry (Diário de uma louca, Garota Exemplar) e estrelado por Taraji P. Henson (O curioso caso de Benjamin Button, Estrelas além do Tempo), o filme Acrimônia narra a história de Melinda, uma mulher marcada por uma relação abusiva que a leva às raias do desequilíbrio emocional. 

É interessante o modo como o roteiro é construído, partindo do significado das palavras e da musicalidade para definir os sentimentos que acometem a personagem central. As situações são pontuadas por palavras-chave sinalizando as diferentes etapas vivenciadas, como a fúria, a separação e o lamento. Embalada pelas canções melancólicas na voz de Nina Simone, a narrativa é conduzida inicialmente pelas memórias de Melinda (Taraji P. Henson). É através dela que testemunhamos a história de amor e de sacrifício da jovem Melinda (Ajiona Alexus) e sua paixão por Robert Gayle (Antônio Madison/Lyriq Bent), que aos poucos vai se transformando em ódio.

O roteiro de Tyler Perry dialoga com a realidade de muitas mulheres que abdicam de seus sonhos para satisfazer os desejos e a realização de seus companheiros. Além disso, aborda a exploração financeira e a manipulação psicológica a que se submetem com medo de perder o parceiro. Some-se a tudo isto, as pressões familiares e sociais, e o aflorar dos sentimentos de ciúme e traição, agravados por um quadro de transtorno de personalidade.

O trunfo do roteiro, muito bem escrito, é o desenvolvimento das personagens, que apresentam várias camadas. Não há que se falar em maniqueísmos, mas seres humanos complexos. Em Acrimônia não há um típico vilão ou mocinho, mas indivíduos desajustados que apesar de causar no espectador alguma simpatia, também provocam pesar. 

Com as devidas diferenças, Acrimônia nos faz lembrar de um grande sucesso do cinema: Atração Fatal (1987), de Adrian Lyne, com Glenn Close, Michael Douglas e Anne Archer. 

Elisabete Estumano Freire






Paris 8


Com roteiro e direção de Jean Paul Curveyac, "Paris 8" é uma história de amor e entrega à arte cinematográfica. O filme apresenta a trajetória do personagem Etienne (Andranic Manet), um jovem que sai de Lyon para Paris com o objetivo de estudar cinema na Sorbonne. A narrativa mostra o conflito entre o idealismo artístico e o ativismo político, de jovens que sonham em construir um mundo mais justo através da sua arte ou da militância partidária.

Recém-chegado ao ambiente universitário, Etienne vai deixando para trás a vida de adolescente que levava no interior da França. Sorbonne é um mundo novo,  que se abre para o personagem, mas que causa estranheza e amedronta, ao mesmo tempo que inebria a alma daqueles que amam a arte do cinema acima das relações interpessoais. 

Nesse novo universo, Etienne procura fazer amigos e conhece Mathias (Coretin Fila) e Jean-Nöel (Gonzague Van Bervesselès). Mathias se destaca entre os alunos, como o mais inteligente e exigente. Estudioso das obras clássicas, de gosto apurado e de grande oratória, o rapaz é bastante crítico e mordaz quanto à produção contemporânea do cinema francês e aos projetos dos demais alunos de cinema. Tal atitude, apesar de causar antipatia de muitos colegas, provoca em Etienne uma grande admiração e respeito. 

Inseguro para finalizar seu roteiro e apresentar seu projeto de curta, Etienne se torna cada vez mais dependente de Mathias, enquanto tenta se encontrar e autoafirmar. Instável amorosamente, vê o colega como um adversário intransponível, envolto numa atmosfera de mistério e sedução intelectual, que ajuda Etienne a ampliar sua perspectiva artística e visão de mundo.

Curveyac construiu um roteiro denso, em que os personagens apresentam várias camadas dramáticas, e aprofundam questões no âmbito ético, estético, político e filosófico, refletindo sobre o fazer cinematográfico. O autor questiona o papel político do cinema. Critica o cinema de pura fruição, que coloca o indivíduo numa posição confortável de espectador, incapaz de tomar alguma atitude prática, enquanto a vida continua do lado de fora, com suas urgências. Ele questiona a linha que separa cineastas de ativistas, de forma honesta, conclamando que as artes não devem se abster de seu papel político, chamando atenção para a responsabilidade da nova geração de cineastas. 

Com uma belíssima fotografia em PB, o filme apresenta um trabalho técnico primoroso, provocando uma aura de nostalgia que remete às vanguardas do cinema francês e italiano, aliado a trilha sonora recheada de composições clássicas. O diretor optou por uma montagem episódica e cronológica, em que os acontecimentos correspondem a diferentes fases da vida do personagem central. O filme é uma verdadeira obra poética, na forma e no conteúdo, que nos faz refletir sobre quem realmente somos, o que aparentamos ser e o que queremos realizar em nossas vidas. 

Elisabete Estumano Freire.

Ficha Técnica

Paris 8 (A Paris Education)
Direção: Jean-Paul Civeyrac
Roteiro: Jean-Paul Civeyrac
Elenco: Andranic Manet, Diane Rouxel, Jenna Thiam
Gênero: Drama
País: França
Ano: 2018
Duração: 137 min
Classificação: 14 anos

Estreia: 17 de maio de 2018.

Se você soubesse

Dirigido pela cineasta francesa Joan Chemla, e estrelado pelo ator mexicano Gael García Bernal,  Se você soubesse (Si Tu voyais son coeur) é inspirado no romance Mon Ange (Boarding Home, 1987), do escritor cubano Guillermo Rosales. O filme narra a história do personagem Daniel (Bernal), um membro de uma comunidade de ciganos hispânicos, que mora no subúrbio dos arredores de Paris, e que se sente duplamente exilado, pela condição de estrangeiro e por sua família. 
Discriminado pela sociedade francesa e excluído do mercado de trabalho, o cigano Daniel vive de pequenos golpes e crimes. Seu amigo Costel (Nahuel Perez Biscayart), após o casamento e sem conseguir um emprego formal, pede sua ajuda e passa a participar dos esquemas feitos por Pepe (Manuel "Manole" Munõz). Tudo parecia ir bem, quando um infortúnio acontece, desestruturando a vida de Daniel.
Perseguido por Lucho (Mariano Santiago), Daniel é expulso da comunidade de ciganos e encontra refúgio no Hotel Metrópole. O local é uma espécie de abrigo de idosos, prostitutas, loucos e párias. Constantemente extorquido, sem dinheiro para pagar o aluguel, Daniel aceita trabalhar para o mafioso Ali (Abbes Zahmani), dono do hotel e seu violento gerente, Michel "Umberto" (Karim Leklou). Vivendo no limite de sua sanidade, Daniel é atormentado pelas lembranças do passado e pela depressão. 
A cineasta constrói uma narrativa através da memória do protagonista. A montagem utiliza o recurso do flashback em vários momentos, sempre contrastando com o presente do personagem. A fotografia também reforça o subjetivo de Daniel, alternando a luminosidade do passado de felicidade, em meio a comunidade de ciganos e ao lado do amigo Costel (Biscayart), e a escuridão de dor do presente, representado por tons sombrios e vermelhos do hotel Metrópole. O local é a verdadeira imagem do inferno na alma do protagonista.
A movimentação sinuosa da câmera do diretor de fotografia Andre Chemetoff também reflete toda a perturbação do espírito de Daniel. Percorrendo corredores escuros, atravessando paredes com travellings que riscam o ambiente em diagonal, e o uso excessivo de plongèes, Chemetoff representa visualmente a alternância dos momentos de lucidez e alucinação do protagonista. 
Com o aparecimento de Francine (Marine Vacht), a esperança ressurge para Daniel. A personagem, que está sob a tutela de Ali, devolve ao protagonista a motivação para enfrentar os desafios. A mudança de perspectiva do personagem é percebida visualmente por uma fotografia mais iluminada. A trilha sonora também é bastante utilizada pela cineasta como índice deste sentimento, além do uso de imagens simbólicas. Um dos momentos mais sublimes é a sequência ao som de Danúbio Azul, Opus 314, de Johann Strauss. 
O filme de Joan Chemla é uma adaptação da obra do romancista e jornalista cubano, Guillermo Rosales, que fugiu do regime de Fidel Castro e foi se exilar nos Estados Unidos, em 1979. O autor sofria de esquizofrenia e se sentia um duplo exilado, pelo seu país e por sua família. Cometeu suicídio em Miami, em 1993, aos 47 anos de idade. Dono de um estilo forte, de crítica voraz e niilista, Rosales destruiu a maior parte de suas obras, deixando apenas dois romances publicados: El Juego de la Viola (1967) e The Halfway House (Original) reaparecendo sob o título de Boarding Home (1987), romance vencedor do prêmio "Letras de Oros", publicado em francês sob o título Mon Ange.

Elisabete Estumano Freire



Estreia: 03/05/2018, lançamento exclusivo em formato streaming, no Itunes, Now e Google.

SE VOCÊ SOUBESSE (SI TU VOYAIS SON COUER, 2017)
DURAÇÃO: 1h26m. 
GÊNERO DRAMA. 



Submersão

Dirigido por Wim Wenders, "Submersão" é baseado no livro homônimo de J.M. Legard, e narra a história de amor de dois personagens que vivem em mundos completamente opostos e se encontram num remoto hotel na região da Normandia. Enquanto a biomatemática Danielle "Danny" Flinders (Alicia Vikanders) está realizando uma pesquisa oceanográfica, o espião britânico e engenheiro de águas, James Moore (James Mcvoy) pretende se infiltrar junto a um grupo de terroristas jihadistas. 
O filme faz parte do chamado grupo B de Wenders, divisão natural feita pelo próprio cineasta, caracterizado como produções em cores, centrados nos personagens, criados a partir de histórias de outros autores, com orçamentos maiores e uma estrutura de produção mais organizada, próxima ao estilo hollywoodiano. De acordo com Martins (2014)*, temos ainda: o grupo A, que se caracteriza por filmes em preto e branco, de baixo orçamento, centrados numa percepção da paisagem e de caráter mais realista, com roteiros construídos durante as filmagens; e o grupo misto, que reúne características de ambos os grupos.
Em "Submersão", os personagens são seres solitários, como anjos alados, totalmente comprometidos com o seu trabalho e um grande desejo de contribuir com a humanidade, ainda que para isso precisem desafiar os riscos da morte. Entretanto, o encontro amoroso acontece, mudando a perspectiva de ambos sobre o sentido da vida e o preço do sacrifício pessoal.  

O contraste existente entre o indivíduo nômade e o sedentário, uma constante nos personagens wendersianos, também está presente em "Submersão". Vivendo na fronteira de dois lados opostos, tanto Danny quanto James possuem um olhar estrangeiro, mas nutrem um desejo enorme de se fixar, estabelecer laços que os mantenham em segurança.
Wenders mais uma vez destaca a exuberância da paisagem para revelar o sentimento de solidão e de impotência dos personagens. Em meio a uma realidade que, ao mesmo tempo, os oprime e os conduz, eles são impulsionados por uma força centrífuga da qual não conseguem se desvencilhar. Cineasta de alma romântica*, Wim Wenders utiliza as ruínas de guerra nas praias da Normandia para mostrar a fragilidade da vida humana diante das barreiras quase intransponíveis do mundo que eles precisam enfrentar. O medo faz parte desse conflito, que permanece presente, interferindo diretamente na união e/ou separação dos personagens.  

A narrativa é feita inicialmente em flashbacks, a partir das memórias de James (Mcvoy), que se encontra refém dos jihadistas. Depois, o presente de ambos os personagens é revelado numa montagem alternada. A escuridão e a claustrofobia do ambiente do submergível é comparada ao cativeiro de James, que luta para manter a sanidade e a esperança em sair vivo dali e reencontrar Danny (Vikanders).
A ideologia política e religiosa é confrontada na figura do Dr. Shadid (Alexander Siddig), e dos extremistas jihadistas, que questionam as crenças de James como condição para sua sobrevivência. O embate ideológico também passa pela tentativa de desconstrução da identidade do prisioneiro, que em crise busca em suas memórias o equilíbrio.
A percepção da realidade que nos envolve, a dificuldade em enxergar o que está diante de nossos olhos é outra constante nos filmes do cineasta alemão. Numa eterna relação de mediação com o mundo, os personagens têm dificuldades em se comunicar e sofrem o sentimento de abandono, sempre frustrados em seu desejo de aproximação com o outro.
Partindo da adaptação do romance de J.M. Legard, Wenders trabalha com as camadas do oceano profundo e o subconsciente humano, que determina nosso modo de entender a realidade e enfrentar a vida. O discurso da guerra, seja interna ou externa, permeando o posicionamento do indivíduo também é trabalhado neste longa. "Submersão" é mais um filme do cineasta alemão que relaciona a paisagem como janelas para o interior emocional dos indivíduos.

Elisabete Estumano Freire

* India Mara Martins, autora do livro "A paisagem no cinema de Wim Wenders"(Editora Contracapa, 2014) é uma pesquisadora e professora do curso de Cinema da Universidade Federal Fluminense.



SUBMERSÃO (SUBMERGENCE, 2017)
DURAÇÃO: 1h52m
DRAMA, ROMANCE, TRILLER

Aos teus olhos


Dirigido por Carolina Jabor, "Aos teus olhos" aborda o perigo de julgamentos precipitados compartilhados nas redes sociais. O filme narra a história de Rubens (Daniel de Oliveira), um professor de natação infantil, que é acusado pelos pais de um de seus alunos de pedofilia. O caso cai nos grupos de mensagens da escola e repercute na internet sem que o professor tenha chances de se defender e sem qualquer investigação, com consequências graves para ele. 

Inspirado na peça espanhola "O princípio de Arquimedes", de Josep Maria Miró, com roteiro de Lucas Paraizo, o filme questiona o linchamento moral das pessoas sem provas. E ainda, o perigo do uso irresponsável das redes sociais em compartilhar falsas denúncias contra a honra dos indivíduos. O longa é uma crítica sobre a falsa ideia da internet como "Terra de ninguém", em que tudo é possível, sem a necessidade de se preservar a imagem e a dignidade do outro. E chama atenção para o fato de que é importante se observar o princípio legal da presunção da inocência até que se prove o contrário. 

A opção por uma narrativa construída a partir da ambiguidade dos personagens, na imprecisão dos acontecimentos e no medo permitiu uma ênfase na subjetividade.  Há um questionamento sobre a mudança de valores na relação professor-aluno, muitas vezes distorcida nos tempos atuais. Por outro lado, o conflito entre os pais do garoto e a cobrança pela excelência no desempenho da criança também é colocada em pauta. 


Tanto a atitude dos pais, interpretados pelos atores Marco Ricca e Stella Rabelo, quanto do menino Alex (Luiz Felipe Mello) levam o público a duvidar até o último momento sobre a inocência ou não do professor. Seria Rubens realmente um abusador? Ou o estranho comportamento do garoto é devido ao conflito parental da qual é vítima? Outro tema levantado é o preconceito e discriminação referente aos homossexuais. A orientação sexual do personagem é questionada pelos pais do menor, pelo colega de trabalho (Gustavo Falcão) e pela diretora do clube de natação (Malu Galli), como possível justificativa para acusar o professor de abuso sexual contra menores.   


A montagem é fluida, desenvolvida em ordem cronológica, tendo como elemento de destaque a água, que ganha um novo significado, como uma pausa na narrativa e momento de reflexão não somente dos personagens, mas também do espectador. Este último não é testemunha do fato, mas é levado a tirar suas próprias conclusões a partir dos discursos dos personagens, por essência contraditórios e tendenciosos. Tudo parte do ponto de vista do observador, já que todos assumem um posicionamento levado pela emoção e não pela razão.  


O filme mostra como a prática do denuncismo irresponsável, pode levar os indivíduos a destruir a reputação e a vida de uma pessoa, condenada sem provas e sem direito à defesa. Um alerta, principalmente em tempos de internet, em que o linchamento virtual é cada vez mais presente. Tal prática é um crime contra a honra (Calúnia, injúria e difamação), tipificado no Código Penal Brasileiro (arts. 138,139,140).

"Aos teus olhos" de Carolina Jabor nos faz lembrar do caso da Escola Base, localizada no bairro da Aclimatação, em São Paulo, em março de 1994. Os proprietários da escola foram massacrados pela mídia e pela sociedade, acusados de pedofilia e prática de orgia com crianças de quatro anos de idade. Foram presos, agredidos, ameaçados de morte. No entanto, eram inocentes. O caso foi arquivado por falta de provas. Como resultado, os donos da escola faliram financeiramente e tiveram a vida pessoal destruída. 

Elisabete Estumano Freire.




AOS TEUS OLHOS (2017) - BRASIL
DURAÇÃO: 1h27m
GÊNERO DRAMA.