"O Processo" (2018)


Dirigido por Maria Augusta Ramos, o filme "O Processo" é uma reflexão sobre o processo jurídico-político que resultou no afastamento da Presidente Dilma Roussef, a primeira mulher eleita pelo voto popular a ocupar o mais importante cargo do Poder Executivo Brasileiro. 


Sem interferir diretamente no objeto de sua observação, durante as filmagens, adotando o estilo do documentário direto norte-americano de Robert Drew ("Primárias",1960), a câmera de Maria Augusta Ramos acompanha os atores principais, da acusação e da defesa. O longa registra o dia a dia dos corredores do poder, apresentando os bastidores do Congresso Nacional, as discussões políticas e jurídicas em torno do processo, assim como a espetacularização da mídia, a repercussão internacional e a reação popular, mostrando um país dividido politicamente. 


"O Processo" é a continuação de uma proposta da cineasta em realizar filmes que possibilitem a reflexão sobre a relação do Poder Judiciário e a sociedade. Entre seus trabalhos mais conhecidos, a trilogia "Justiça" (2004), "Juízo"(2007) e "Morro dos Prazeres" (2013), além de "Futuro Junho"(2015), premiados em festivais no país e no exterior. Seus documentários mostram as relações humanas diante da força coercitiva dos aparelhos do Estado, que atuam de maneira mais incisiva sobre a população carente e marginalizada. Evidencia também a desigualdade entre as classes, a atuação da polícia, a criminalização de jovens infratores, o cotidiano das favelas, a atuação dos movimentos sociais e a luta dos trabalhadores. 

A ÉTICA NA APRESENTAÇÃO DOS ARGUMENTOS DA DEFESA E ACUSAÇÃO 


No documentário sobre o processo de impeachment da presidenta Dilma Roussef, percebe-se um esforço da cineasta em contemplar as diversas narrativas políticas, tanto da Esquerda quanto da Direita. Ainda que tenha tido mais acesso às reuniões internas da bancada do PT e da equipe dos advogados de defesa, Maria Augusta também acompanhou a movimentação dos políticos oponentes ao governo petista e à acusação, principalmente na figura da advogada Janaína Paschoal. 
O longa, além de ser um registro histórico dos acontecimentos políticos, revela a crise das instituições democráticas no país, a influência das bancadas religiosas no Congresso Nacional e a disputa pelo poder entre grupos antagônicos. Num contexto em que o governo petista estendia para o quarto mandato frente à presidência da República, a reação da oposição foi violenta. Sem apoio na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, o governo de Dilma Roussef se tornou alvo das acusações de crime de responsabilidade.


Quase de maneira didática, o documentário finalmente faz entender a inconsistência do teor da denúncia, que chamou de operações de crédito a política de subvenção econômica relativa ao Plano Safra, programa federal de apoio à produção agrícola, acusando a presidenta Dilma da prática de "pedaladas fiscais".  E ainda, a alegação de crime de responsabilidade pela edição de seis decretos de crédito suplementar, no exercício de 2015, que estariam supostamente em desacordo com a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Entretanto, tais decretos além de serem expressos por autorização legal estavam estritamente de acordo com o cumprimento da meta fiscal, sem aumentar as despesas da União, como esclareceu o advogado de defesa (AGU), José Eduardo Cardozo.

CRONOLOGIA E REPERCUSSÃO DOS FATOS

Para além das discussões legais e técnicas, o filme traz a cronologia dos fatos, decorrentes do recebimento da denúncia pela Presidência da Câmara. A admissibilidade da abertura do processo de impeachment era uma retaliação publicamente anunciada do então Deputado Eduardo Cunha (PMDB-RJ) contra o partido do governo. Réu em três processos, todos ligados às investigações da "Operação Lava Jato" da Polícia Federal, Cunha não havia obtido o apoio do PT para impedir sua cassação no Conselho de Ética.

O documentário enfatiza a pequena repercussão internacional do processo de impeachment, à época ofuscado pelas notícias dos Jogos Olímpicos Rio 2016. Também apresenta a inércia dos governos estrangeiros que não haviam se pronunciado oficialmente sobre a crise política brasileira. Destaca ainda o papel da imprensa, o cotidiano das coletivas e a guerra de informações sobre denúncias da "Operação Lava Jato" envolvendo os principais atores políticos. 


O filme também revela um posicionamento de autocrítica do Partido dos Trabalhadores, mostrando os erros cometidos no Poder, sem conseguir dialogar diretamente com grande parcela da população. A falta de comunicação com os anseios da sociedade, o distanciamento dos movimentos sociais e o isolamento político propiciaram a grave crise que o partido já vinha enfrentando, culminando no processo jurídico-político de impeachment da presidente Dilma Roussef, ainda que sem os indícios e materialidade  do crime de responsabilidade. 

A LINGUAGEM DOCUMENTAL E A ALUSÃO À OBRA DE KAFKA


A dialética presente na construção fílmica, mostrando a manifestação dos dois lados políticos, é fator preponderante na narrativa de "O Processo". A montagem é feita com esta preocupação, sem  abrir mão dos respiros e certos alívios cômicos, mantendo o ritmo e o interesse do espectador. A documentarista também optou por não incluir trilha musical, nem narrativas em off. 

O filme é pontuado por cartelas, com informações sobre as etapas do processo, o uso de áudios de arquivo e som direto, captando os bastidores do Congresso e a musicalidade das ruas. Apesar de adotar as diretrizes conceituais do cinema direto norte-americano, de intervenção mínima, o recorte escolhido pela documentarista evidencia o processo criativo na apropriação do real, e o empenho em apresentar os diferentes discursos, sem abdicar do seu posicionamento político. 

"O Processo" é resultado de um trabalho minucioso de montagem, reduzindo cerca de 450 horas de filmagem em 2h17 minutos. Apesar de abordar um tema espinhoso e complexo, Maria Augusta e sua equipe mostraram o que a imprensa hegemônica brasileira não fez: apresentar os fatos e fundamentos jurídicos do argumento da defesa, que demonstravam a nulidade do recebimento da denúncia, os vícios procedimentais e a ausência de conduta criminosa, ilícita ou culposa por parte da presidente Dilma, que ensejaria a extinção do processo de impeachment.


A escolha do título é de uma precisão jurídica e singular, já que faz alusão a obra homônima de Franz Kafka. O autor tcheco, de origem judia, formado em Direito e integrante da Escola de Praga, possui um olhar pessimista sobre o Poder Estatal e a opressão burocrática das instituições. Ele critica o sistema jurídico, a representação da Justiça e o Estado de Direito. Em "O Processo", o personagem Joseph K. é funcionário de um banco, sendo acusado num processo misterioso, arbitrário, e condenado de pronto, sem ter cometido crime algum. A forma se sobrepõe à substância, numa acusação sem materialidade. 


Adaptado para o cinema na década de 1960, a obra de Kafka chega às telonas pelas mãos de Orson Welles. O filme de ficção é contemporâneo das discussões sobre o acesso à justiça, numa época em que Hollywood não tinha se recuperado do terror do Macarthismo, de violações de direitos civis e perseguições políticas contra simpatizantes de esquerda, durante o período da Guerra Fria. 

Analogamente, o documentário de Maria Augusta Ramos retoma o título para mostrar a arbitrariedade na condução do processo jurídico-político de impeachment da presidente Dilma Roussef. Como um jogo de cartas marcadas, mostra que o rito processual foi colocado acima da substância da matéria jurídica para atender a interesses políticos e promover a destituição de uma mulher, reeleita a Presidente da República, por sufrágio popular, com mais de 54 milhões de votos. 

O FUTURO DO BRASIL


O filme aponta as primeiras consequências após o afastamento da presidente Dilma Roussef. O agravamento da crise social, como corolário da crise política, na retirada de direitos dos trabalhadores. As previsões e denúncias da bancada do PT sobre a condução na nova política governamental se concretizam. O governo de Michel Temer, que deu prosseguimento à reforma trabalhista e ao encaminhamento da reforma previdenciária, foi protegido pela maioria da Câmara, que votou pelo arquivamento do processo de corrupção passiva denunciado pelo procurador Rodrigo Janot. Enquanto isso, a perseguição às lideranças da esquerda continuam, culminando com a prisão do ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva

Premiado nos mais importantes festivais de cinema documental na Espanha (Festival Documenta Madri), Portugal (Festival Indie Lisboa), Suíça (Festival Vision du Reel) e Alemanha (Berlinale), o filme "O Processo" vem conquistando o reconhecimento internacional. O documentário de Maria Augusta Ramos além de revisar a história política recente do país, é um trabalho de preservação da memória nacional, revelando o outro lado da história, que a imprensa hegemônica preferiu abafar, agravando as diferenças e provocando o acirramento da polarização política da sociedade brasileira.  

Para ler nossa crítica sobre a ficção "O Processo" de Orson Welles, uma adaptação da obra de Franz Kafka, é só clicar no link a seguir: http://www.cabinedecinema.com/2017/02/o-processo-1962.html

Elisabete Estumano Freire.



Sinopse:
"O Processo" oferece um olhar pelos bastidores do julgamento que culminou no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff em 31 de agosto de 2016. O filme testemunha a profunda crise política e o colapso das instituições democráticas no país.

Ficha Técnica:
Direção e Roteiro: Maria Augusta Ramos
Direção de Fotografia: Alan Schvarsberg
Som: Marta Lopes
Montagem: Karen Akerman
Edição de Som: Bernardo Uzeda
Mixagem: Gustavo Loureiro
Direção de Produção: Paula Alves
Produção Executiva: Maria Augusta Ramos
Uma Produção de: Nofoco Filmes
Uma Coprodução de: Autentika Films, Conjin Film e Canal Brasil
Ditribuição: Vitrine Filmes

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